Maranhense de nascimento, Francisca Freitas Feitosa vive hoje no Jardim América, na companhia de sua irmã Cecília e de seus dois cachorros. Aos 45 anos, relembra o pior período de sua vida, quando sucumbiu à dependência química. Detida pela polícia, Francisca passou três meses na prisão e mais 11 em uma casa terapêutica. Acredita que não teria conseguido superar seu vício sem o apoio da família e considera sua história como aprendizado de vida
Quem chega para visitar Francisca é recebido pelo casal de dálmatas Rita Lee e Raul. A dona, que não tem mais de 1,5m de altura, prefere conceder a entrevista em duas cadeiras postas no quintal, pois o calor de novembro na capital goiana não dá trégua para os habitantes. De seu lugar, ela tira os óculos o tempo todo para secar a testa, enquanto recria a história de vida que começou em 4 de maio de 1967, quando a cearense Raquel Freitas Nogueira de Sousa deu à luz a penúltima filha de uma prole de 12, Francisca Freitas Feitosa. Da cidade de Dom Pedro do Maranhão, por decisão do pai, Luiz Feitosa de Sousa, a família se mudou para Goiás quando Chiquinha, apelido de Francisca, tinha apenas sete anos de idade.
Francisca cresceu em um ambiente em que aprendeu a valorizar o companheirismo entre familiares. Dos 11 irmãos, ela revela ter sido Cícero, falecido há 12 anos, seu melhor amigo. Dessa infância na calmaria das ruas ainda em formação de Goiânia, lembra-se do primeiro animal de estimação da família, o cão Bolero, que ela descreve como um pastor alemão amarelado. Vem daí sua paixão pelo gênero canino, que é evidente na forma expressiva com que fala do assunto. Nessas ruas de terra Francisca também liderava os irmãos nas brincadeiras. Pipas, piões, bolas. Nem a criminalidade nem o trânsito eram intensos o bastante para atrapalhar a euforia infantil.
Dependência química
Francisca não hesita em afirmar que foi esse amor à família, cultivado desde criança, que a libertou da dependência química. Vício que começou com o consumo de maconha aos 17 anos, quando era uma menina que ainda não tinha descoberto ser a dislexia a causa de sua dificuldade nos estudos. O consumo de drogas se intensificou com o falecimento da mãe, em 2008. Com a instabilidade emocional, Francisca passou da maconha para a cocaína e o crack. “Tudo demais é veneno”, diz ela. Foi com a própria mãe que aprendeu o ditado muito comum no Maranhão.
Relata, porém, que nunca se permitiu chegar ao mesmo estado da maioria de seus companheiros de consumo. “Eu tive amigos que venderam moto e carro para pagar dívidas ou comprar mais drogas”, conta. Segundo ela, muitos desses antigos amigos ainda se encontram dormindo pelas ruas de Goiânia. “Eu me lembrava da minha família, que nunca me abandonou, e me forçava a não chegar ao fundo do poço”. Mesmo com o apoio dos parentes, Francisca não conseguiu se desvincular do vício. Em maio de 2011, foi detida por tráfico de drogas. “Eu vendia e comprava dentro do meu próprio grupo de usuários, que era bem pequeno”, explica.
A vida na prisão durou três meses, que ela descreve como angustiantes. Francisca permanecia em uma cela ampla, que já chegou a dividir com 32 presidiárias. Nesse ambiente, desempenhou novamente o papel de líder, que aprendeu na infância, para evitar conflitos entre as companheiras de cela. A única forma de entretenimento era uma televisão. Dos programas televisivos da época, ela se lembra da novela Insensato Coração, trama do horário nobre global. Os banhos de sol só aconteciam as segundas, quartas e sextas. No restante dos dias da semana, as presidiárias continuavam no confinamento das celas.
Superação
Francisca deixou a prisão em julho do mesmo ano para ser internada na casa terapêutica para mulheres Águas de Meribá, em Senador Canedo. “Foram 11 meses em que eu refleti bastante”, relata. “Minha família me visitava sempre e eu saí de lá limpa”. Em Águas de Meribá, a rotina era um alívio se comparada com a vida na prisão. Lá, Francisca participou de cultos religiosos, sessões de psicanálise e reuniões entre pacientes. Sua primeira entrevista aconteceu nesse período. Uma repórter televisiva visitou o local e escolheu Francisca como personagem da reportagem. “Os vizinhos e amigos que viram ficaram felizes, pois pensavam que eu continuava na prisão”, conta.
O trabalho em Águas de Meribá começava bem cedo. Às 6h da manhã, as mulheres se levantavam para tomar café, ler um trecho bíblico e, então, concentrar-se em seus afazeres. A tarefa que atribuíram a Francisca foi zelar pelo jardim e a horta. Ela, que não costuma preparar muito além do frango caipira e da carne de porco frita com arroz branco, deixava para outras mulheres as tarefas da cozinha. Diz que sua alegria mesmo era trabalhar pesado e terminar o dia com as mãos sujas de terra.
Religiosa desde criança, hábito que herdou da mãe, Francisca agradece a Deus pela liberdade que encontrou em Águas de Meribá. “A droga é muito destruidora”, alerta. “Não destrói apenas o usuário, mas também a família e os amigos”. Hoje é consciente de que não pode se descuidar. “O risco de recaída existe e não pode ser esquecido”, afirma. “O ser humano é fraco e vive em constante perigo de cair e cabe a Deus nos levantar”, acrescenta.
Livre da dependência química, Francisca vive ao lado da sua irmã Cecília e do casal de dálmatas na casa em que já mora há 34 anos, no Jardim América. A maioria dos móveis da casa foi comprada pela mãe. A própria cama em que Francisca dorme foi da progenitora. “Não repare na bagunça”, pede Francisca, frase comum de quem está preocupada com a opinião da visita. Na parede da sala, quadros de fotos da família cobrem uma parede inteira. Dos 12 filhos de Raquel e Luiz, ambos falecidos, sobram ainda oito. Nesse momento, Francisca acha importante declarar novamente seu amor pela família. “Eu tenho sorte de ter tido o apoio de meus parentes para que esse período ruim se tornasse uma história de superação no fim”, declara.
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