Leandro de Castro
No coração do Brasil, a transformação do mercado de trabalho vai muito além da legislação. Por trás de cada fábrica, cada linha de produção e cada escritório, há histórias de superação, coragem e inovação que desafiam preconceitos e mostram que a inclusão é também sinônimo de excelência.
A inserção de pessoas com deficiência (PCDs) nas indústrias brasileiras vem crescendo, impulsionada por leis como a Lei de Cotas (Lei nº 8.213/91). Mas o que acontece quando uma empresa decide ir além da obrigação legal? Em Goiás, a resposta se fortalece com iniciativas recentes como o Programa Compliance Inclusivo, lançado no último dia 14 de outubro pela Federação das Indústrias do Estado de Goiás (FIEG).
A iniciativa inédita oferece ferramentas e orientação para que as empresas implementem políticas de inclusão de forma estratégica, segura e alinhada às melhores práticas, potencializando o impacto positivo da diversidade.
Por meio desse programa e de outras ações já em curso, surgem histórias inspiradoras de profissionais que quebraram barreiras, gestores que repensaram práticas e instituições que criaram modelos de referência. Essas trajetórias provam que a inclusão não é apenas uma meta de compliance, mas um motor de inovação e impacto social, capaz de transformar vidas e consolidar resultados concretos para empresas e sociedade.
Da adversidade à oportunidade

A trajetória de Robervam Batista, 37 anos, é um desses exemplos. Cego de um olho, ele atua no setor elétrico da frota de caminhões da Refrescos Bandeirantes Coca-Cola há mais de dez anos. Desde o início, Robervam destaca o tratamento igualitário e as oportunidades de crescimento dentro da empresa.
“Dentro da minha função atual, não percebo dificuldades em razão da minha deficiência. A empresa sempre me apresentou todas as oportunidades, e meu lema é me superar a cada dia. Quem tem deficiência precisa assumir seu lugar; o que limita não são as pessoas ou os espaços, mas nossa própria percepção sobre nossas capacidades”, afirma.

Ao longo de sua caminhada dentro da indústria, Robervam participou de treinamentos contínuos e recebeu suporte técnico e emocional, evidenciando que a inclusão não se resume a preencher vagas, mas a criar condições para o desenvolvimento integral do colaborador.
“Aqui já passei por diversas áreas e fui promovido três vezes, sendo, inclusive, coordenador de rotas, e sempre fui muito bem assistido. Busco me superar a cada dia mais, independentemente da minha dificuldade e é isso que faz a diferença”, acrescenta.

Outro exemplo inspirador é Welsei Araújo, 46 anos, que perdeu um dos braços e atua na área de transporte da mesma indústria, localizada em Trindade, na Região Metropolitana de Goiânia. Para ele, o trabalho representa mais do que ocupação: é uma oportunidade contínua de aprender, crescer e transformar sua realidade.
“Nos primeiros dias, a dificuldade era grande. Mas com o apoio de colegas, do RH e dos supervisores, consegui me adaptar e aprender cada função. Hoje meu desempenho aqui é quase 100%, domino bem os sistemas do computador e, aos pouquinhos, vou aprendendo cada vez mais. O que a gente não pode é desistir”, afirma.
O ponto mais marcante de sua história é a educação. Welsei nunca teve a chance de concluir o ensino médio na adolescência, mas, com o EJA (Educação de Jovens e Adultos), oferecido pelo Senai dentro da indústria, ele concluiu seus estudos e agora se prepara para ingressar em um curso superior.
“Na minha adolescência não consegui terminar meus estudos, mas, através do EJA, que o Senai proporciona aqui pra gente, concluí o ensino médio e, agora, em dezembro, será nossa formatura. Espero, se Deus quiser, entrar em uma faculdade”, diz, já se preparando para dar o próximo passo na sua trajetória profissional.

“Quero continuar aprendendo, fazer um curso superior e, se possível, ensinar outras pessoas. O que aprendi aqui posso passar para os outros, e quero estar disponível para quem precisar de ajuda”, sublinha.
As realidades de Robervam e Welsei, que poderiam ser marcadas por limitações, se transformaram em histórias de autonomia, capacitação e reconhecimento. Casos como os deles reforçam a importância de ambientes corporativos que valorizam o potencial humano em todas as suas formas, comprovando que a diversidade é também um diferencial competitivo.
Diversidade como valor corporativo
Para o gerente de Recursos Humanos da Refrescos Bandeirantes Coca-Cola, Pedro Henrique Barbosa, os resultados alcançados pelos colaboradores com deficiência são a prova de que investir em inclusão é investir em pessoas e, consequentemente, no próprio crescimento da empresa.

“Apesar de, por lei, sermos obrigados a cumprir cotas, desde 2020 mudamos a abordagem. Criamos um Comitê de Diversidade e, nos últimos cinco anos, trabalhamos a inclusão das minorias. A empresa tem predominância masculina, então focamos na inclusão de mulheres, pessoas com deficiência e na inclusão racial na liderança. Esses são os três pilares do projeto”, explica.
Segundo ele, o impacto do programa implementado na indústria é notável. “Hoje, os PcDs ocupam cargos em todas as áreas, inclusive na diretoria, e mais de 60% das vagas abertas são preenchidas por colaboradores internos, enquanto mais de 90% das lideranças surgem do próprio quadro da empresa”, pontua.
Ainda de acordo com o gerente, o trabalho começa logo no momento do recrutamento, com processos mais acessíveis, entrevistas adaptadas e acompanhamento individualizado, e segue durante toda a jornada do colaborador. Ele reforça que a contratação de PcDs não apenas mantém, como aumenta os índices de produtividade e engajamento das equipes.
“Temos psicólogos capacitados para atender pessoas com necessidades específicas, como surdos que utilizam Libras. Capacitamos gestores para conduzir processos seletivos de forma humanizada, e todo o time de RH recebe formação contínua em diversidade e inclusão, garantindo que a cultura inclusiva seja disseminada em toda a empresa”, reforça.

Essa postura rendeu à Refrescos Bandeirantes o Troféu Empresa Inclusiva 2025, reconhecimento concedido a indústrias que ultrapassaram as metas de contratação de pessoas com deficiência. A premiação ocorreu durante o 3º Seminário da Inclusão da Pessoa com Deficiência nas Indústrias, onde a empresa conquistou o terceiro lugar pelo destaque em suas práticas de acessibilidade e valorização da diversidade.
Panorama da inclusão em Goiás
A realidade de inclusão nas indústrias goianas, no entanto, ainda reflete os desafios nacionais. Segundo o Instituto Mauro Borges (IMB), cerca de 582 mil pessoas em Goiás possuem algum tipo de deficiência, equivalente a 8,52% da população do Estado. O levantamento revela que a presença dessa comunidade aumenta com a idade; entre os idosos com mais de 60 anos, o índice chega a 44%.

Em âmbito nacional, o IBGE estima que 18,6 milhões de brasileiros, ou 8,9% da população com dois anos ou mais, convivam com algum tipo de deficiência. Dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) indicam que 545,9 mil pessoas com deficiência ou reabilitadas pelo INSS estão inseridas no mercado formal.
Já em Goiás, o IMB aponta que 94,5% das pessoas com deficiência economicamente ativas estão ocupadas, embora grande parte ainda atue na informalidade, cenário que evidencia a necessidade de políticas estruturadas e oportunidades mais acessíveis em todos os setores produtivos.

Um novo marco para a inclusão

É nesse contexto que a Federação das Indústrias do Estado de Goiás (FIEG) tem se destacado ao liderar um movimento de transformação cultural e institucional, apoiando as empresas na criação de políticas de inclusão mais efetivas e sustentáveis.
A demonstração mais recente dessa atuação é o Programa Compliance Inclusivo, lançado no dia 14 de outubro, durante o 3º Seminário da Inclusão da Pessoa com Deficiência nas Indústrias. A iniciativa inédita oferece, mediante contratação, o serviço de diagnóstico, acompanhamento técnico e certificação às indústrias que buscam se adequar integralmente à Lei de Cotas e às normas de acessibilidade.
De acordo com Lorena Blanco, presidente do Conselho Temático de Relações do Trabalho e Inclusão (CTRTI) da FIEG, o programa surgiu para atender a uma demanda crescente das próprias indústrias, que buscavam suporte especializado para aprimorar seus processos de inclusão.
“Unimos as necessidades das empresas com os talentos das PcDs. Avaliamos habilidades, interesses e perfil profissional, garantindo que cada pessoa possa construir carreira e não apenas ocupar uma vaga para cumprir a cota legal. É um programa que traz segurança jurídica, promove produtividade e gera desenvolvimento econômico e social”, explica.

Lorena enfatiza ainda que muitas empresas têm dificuldades em interpretar e aplicar corretamente a Lei de Cotas, e que o Compliance Inclusivo tem justamente o objetivo de preencher essas lacunas. “O programa é um chamamento para que as indústrias olhem para as pessoas com deficiência com respeito, oportunidades reais e valorização. É uma iniciativa criada para ajudar as empresas a entrarem em conformidade com a legislação, desde a calçada até a diretoria, e o impacto disso vai muito além do espaço físico, ele transforma culturas e mentalidades”, afirma.
Somar para transformar
Embora ações positivas como o Compliance Inclusivo tragam resultados concretos e efetivos, a inclusão plena das pessoas com deficiência depende também de ação integrada entre empresas, sociedade e entidades fiscalizadoras. A legislação existe, mas sua aplicação ainda enfrenta barreiras, e muitas oportunidades continuam sendo perdidas. Diante disso, o acompanhamento de instituições como o Ministério Público do Trabalho (MPT) é fundamental para garantir que a inclusão não fique apenas no papel.

Para a procuradora do MPT, Janilda Guimarães de Lima, inclusão verdadeira só acontece quando estruturas físicas, comunicacionais e culturais são adaptadas para acolher a diversidade. “Não basta preencher vagas. É necessário eliminar barreiras físicas, comunicacionais e atitudinais. Empresas devem se tornar espaços realmente acessíveis e igualitários. Isso exige revisão de processos, adaptações de infraestrutura, treinamentos e mudança de cultura organizacional”, ressalta.
O presidente do Fórum Goiano de Inclusão no Mercado de Trabalho (FIMTPODER), Trajano Figueiredo, complementa a visão de que a inclusão depende de oportunidades concretas e engajamento da liderança.
“As indústrias estão percebendo que pessoas com deficiência têm propósito, capacidade de serem produtivas e vontade de construir carreiras. O que elas precisam é de oportunidade. Quando as diretorias e lideranças se envolvem, a inclusão se torna realidade. Atuamos tanto na conscientização quanto na prática, apoiando empresas na identificação das habilidades das PCDs e na adaptação do ambiente de trabalho”, pontua.

Ele reforça que o FIMTPODER trabalha em parceria com organizações como a Associação Apoia e a FIEG, garantindo que cada etapa do processo de inclusão seja integrada, segura e eficaz. “O trabalho do fórum é estratégico: conscientizamos, apoiamos, integramos processos e mostramos que inclusão é sinônimo de desenvolvimento econômico e social. Cada PcD inserido adequadamente fortalece a empresa, a economia e transforma vidas”, conclui.
Para auxiliar empresas e gestores na aplicação prática dessas iniciativas, o FIMTPODER elaborou o Material Facilitador para Inclusão e Permanência de Pessoas com Deficiência e Reabilitados pelo INSS no Mercado de Trabalho. (Hiperlink com o arquivo do material)
O guia oferece orientações detalhadas sobre legislação, tipos de deficiência, processos de contratação e adaptação no ambiente de trabalho, funcionando como uma ferramenta prática para que a inclusão seja efetiva, respeitosa e transformadora.
 
			 
			


 
                                    
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