A educação, em si, é a principal ferramenta de transformação no trânsito. Essa afirmação é repetida com vigor pela comerciante Jaqueline Nunes Marques, de 27 anos, quase todas as manhãs, quando ela dirige rumo ao trabalho, no centro de Senador Canedo, na Grande Goiânia. Em 2014, um acidente de trânsito obrigou Jaqueline e sua família a lidar com a perda de sua irmã mais nova. Em agosto daquele ano, a estudante de jornalismo Jéssyca Nunes, então com 23 anos, morreu após ser atropelada na faixa de pedestres da Avenida Fued José Sebba, em frente ao campus V da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), no Jardim Goiás.
Naquela noite de agosto, antes de ir para a primeira aula do último semestre da graduação, como lembra a irmã, Jéssyca se despediu da filha de 4 anos e da mãe, Margareth Lopes, e seguiu de Senador Canedo ao campus de transporte coletivo. Na universidade, conta uma amiga, ela ouviu atenciosamente a orientação do professor a respeito do trabalho de conclusão de curso. O seu grupo estava acompanhando o dia a dia de dois portadores de Síndrome de Down para a produção de um radiodocumentário.
Por volta das 21 horas daquela segunda-feira, ao sair da universidade para voltar para casa, Jéssyca foi atingida por um Volkswagen New Beetle, com placa de Brasília. Ela chegou a ser socorrida e encaminhada ao Hospital de Urgências de Goiânia (Hugo), mas não resistiu aos ferimentos. O carro que atingiu a jovem, conforme informou na época a titular da Delegacia Especializada em Investigações de Crimes de Trânsito, Nilda Andrade, seguia no sentido Centro-Estádio Serra Dourada. “A condutora desrespeitou a faixa de pedestres, atingiu a vítima, que foi arremessada para o capô e bateu a cabeça no para-brisa”, explicou.
Na última terça-feira, 13, dois anos após o atropelamento da jovem, o Jornal Folha Z voltou ao local e presenciou inúmeras infrações. Por volta das 13h30, a cada vez que a botoeira era acionada pelos alunos que tentavam atravessar a faixa de pedestres para acessar à universidade, uma média de dois veículos avançavam o sinal vermelho. O artigo 208 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) classifica como gravíssimo o ato do condutor avançar o sinal vermelho do semáforo ou o de parada obrigatória. Nesses casos, a multa é de R$ 191,54.
No Brasil, embora haja fiscalização e conscientização por parte dos órgãos autuadores, cerca de 45 mil pessoas morrem anualmente no trânsito, conforme levantamento do Ministério da Saúde (MS). Apesar do Departamento Estadual de Trânsito de Goiás (Detran-GO) realizar programas como Maio Amarelo, Balada Responsável, Viagem Segura e Detranzinho, a fim de evitar que a imprudência e os acidentes renovem as tristes estatísticas ano após ano, duas mil pessoas perdem a vida em vias públicas do Estado.
O coordenador da comissão de análise de acidentes do Projeto Vida do MS, Horácio Ferreira, vê com preocupação a realidade atual do trânsito brasileiro. “O desrespeito à sinalização, como avançar o semáforo, aliados ao excesso de velocidade e a combinação de álcool e direção são os principais causadores de acidentes que matam dezenas de pessoas diariamente”, alerta.
Por este motivo, hoje Jaqueline dirige com atenção extra e encara o trânsito como um “campo minado”, como se a qualquer segundo um sujeito desavisado fosse detonar uma mina. “Procuro evitar as ações que podem, de alguma forma, provocar acidentes”, diz. E como se a dor tivesse se transformado aos poucos em aprendizagem, a comerciante passou a acreditar que a educação no trânsito é o melhor caminho para que todos possam ir e vir com segurança e sem conflitos. “Desde já ensino meus filhos, Maria Eduarda, de 7 anos, e Heitor, de 2, sobre como se comportarem no trânsito. Explico, por exemplo, que não posso atender o celular enquanto dirijo ou parar em fila dupla. A educação vem de berço. Assim, acredito que estou contribuindo para que no futuro eles possam dirigir com responsabilidade”, comenta.
Iniciativas que transformam
Na semana passada, uma operação para combater rachas e manobras perigosas foi deflagrada na GO-020, em Goiânia, pelas polícias Civil e Militar. Na ocasião, 26 pessoas foram presas e vão responder por competição automobilística em via pública e incitação ao crime. Os encontros, conforme informou a polícia, eram marcados pelas redes sociais.
Apesar do cenário não ser tão motivador, há exemplos de cidadania no trânsito. Um vem do motorista Hermelino de Sousa Queiroz, de 47 anos. Há duas décadas, de segunda a sábado, em horários alternados entre às 13h e 00h30, ele dirige um ônibus do transporte público de Goiânia. Para ele, ciclistas, motoristas e motociclistas precisam de bom senso para tornar as ruas um lugar harmônico. “Cada um tem o seu espaço. Dentro do ônibus preciso ter atenção redobrada com ciclistas e pedestres, uma vez que em algumas horas do dia eu também ando à pé”, diz.
Quando há necessidade, Hermelino ainda se torna motociclista sobre uma Yamaha YBR 250. Nessas horas, ele passa a ser, ao lado dos ciclistas e pedestres, um personagem frágil no trânsito. Os acidentes envolvendo motos são a principal causa de ocorrências de trânsito no país. Dados do MS apontam que, em 2013, os acidentes com veículos deste tipo resultaram em mais de 12 mil mortes.
Atualmente, 30% dos veículos motorizados no Brasil são motocicletas, responsáveis por 76% das indenizações por lesões corporais ou morte em acidentes de trânsito do Seguro Obrigatório de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres (DPVAT). O excesso de velocidade, como explica Horácio Ferreira, também é a principal causa de acidentes entre esse grupo. “Pilotando um veículo de duas rodas, muitos condutores acreditam na ideia de agilidade e menos obstáculos no caminho, por isso, muitos apresentam um comportamento agressivo e prejudicial no trânsito”, afirma. Indo na contramão da maioria, Hermelino adotou uma postura para preservar a vida e evitar que a velocidade de sua motocicleta se torne uma arma: “Para não ser negligente, obedeço as placas de sinalização e não saio de casa ser observar todos os itens de segurança”.
Outro exemplo encontrado pela reportagem foi a jovem Larissa Cantarelli, de 23 anos. Desde os 15, a designer de moda usa a bicicleta como meio de transporte em Goiânia. Em 2015, Larissa conheceu e resolveu trazer para a capital o projeto Bike Anjo, rede de ciclistas que promove, mobiliza e ajuda pessoas a começarem a usar a bicicleta nas cidades. “Após muita pesquisa e ajuda de amigos, iniciamos o projeto. Aos domingos nos reunimos na Praça Cívica e oferecemos aos interessados assistência sobre os melhores trajetos para pedalar e ensinamos medidas de segurança no trânsito”, conta.
Se por um lado as redes sociais servem para que jovens marquem rachas, por outro Larissa percebeu que o Bike Anjo atraía mais e mais pessoas a medida em que o grupo divulgava o trabalho no Facebook. “Antes a população tinha resistência em ver a bicicleta como um meio de transporte. Agora a cidade está se tornando mais acessível e cada vez mais gente opta por ir pedalando para suas atividades diárias. Assim as pessoas economizam dinheiro, tempo e priorizam a qualidade de vida”, diz. Para saber mais do projeto, clique aqui.
Hoje, o Bike Anjo, que começou em São Paulo, já se expandiu até para o exterior. E de fora também chegam inúmeros exemplos para melhorar o trânsito e a vida nas cidades. Há quase duas décadas a Suécia adotou a estratégia chamada Visão Zero, que trata como eticamente inaceitável uma pessoa morrer ou ficar gravemente ferida por se deslocar no sistema rodoviário de transporte. Neste sistema, cada pessoa, individualmente, é a responsável por obedecer as leis. Desde então, o número de mortes de ocupantes de automóveis caiu nos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) que adotaram a Visão Zero.
Presentes nas legislações de inúmeros países europeus existem também as Zonas 30 ― sistema que limita a velocidade dos automóveis para 30 km/h. Essas áreas de velocidade reduzida, segundo estudo realizado pelo instituto holandês SWOV, proporcionam uma queda média de 25% no número de acidentes de trânsito. Ainda um pouco tímida, a iniciativa chegou ao centro de Goiânia há cinco meses como Zona 40. A meta é reduzir para zero o número de acidentes na região e, de acordo com a Secretaria Municipal de Trânsito, Transportes e Mobilidade (SMT), dados comparativos serão divulgados em breve.
Expansão da coletividade
Além do trabalho de conscientização, exemplos internacionais e implantação de sistemas que obrigam o cidadão a transitar com mais responsabilidade, atitudes como as de Jaqueline, Hermelino e Larissa, são importantes porque disseminam sementes de transformação na sociedade.
Para o psicoterapeuta Vitor Vaz André, esses personagens são a prova de que estamos vivenciando um momento de expansão do conceito de coletividade, com surgimento de atitudes transformadoras ― sejam no trânsito ou em qualquer outro campo da vida social. “Estamos começando a nos colocar, de fato, no lugar do próximo, agindo com humanidade e percebendo que não somos uma entidade única”, afirma.
Conforme ele explica, colocar-se no lugar do outro como Hermelino ao dirigir um ônibus com 45 passageiros em média e enfrentar com cordialidade um trânsito tumultuado, é o verdadeiro sentido da educação. “As pessoas estão desenvolvendo a capacidade de agregar o coletivo sem sufocar suas tendências pessoais”, avalia, afirmando em seguida que estamos caminhando rumo a um alto nível de educação, onde trabalharemos sempre “em prol da coletividade”.
Preocupado com o meio ambiente e com coletividade, o ator e designer gráfico Charles Rosa Rodrigues, de 41 anos, pedala desde a adolescência e hoje usa a bicicleta como principal meio de transporte. Ele já consegue ver mudanças significativas no comportamento das pessoas. “É cada vez maior o número de pessoas sensíveis, que com pequenas ações diárias ou grandes feitos, estão fazendo parte de um movimento de seres humanos conscientes. Essa é uma revolução silenciosa, sem nome, sem líder e sem bandeiras”, acredita.
Em seu livro Blessed Unrest ― ainda sem tradução no Brasil ―, o ambientalista americano Paul Hawken apresenta justamente esse fato e afirma que as estamos “criando uma sociedade mais justa e sustentável”, que se preocupa com a justiça social, educação no trânsito, direitos dos indígenas e saúde ambiental. Isto forma, segundo o autor, as histórias que merecem ser contadas ― histórias de homens, mulheres e jovens comuns que estão realizando verdadeiras mudanças em suas vidas e em suas comunidades.
Portanto, o caminho e o sinal verde estão abertos aos cidadãos dispostos a envolverem-se a fundo na transformação das cidades e a provar que não há mais espaço para o individualismo, aquele presente na obra de Eça de Queiroz que diz que “dói mais uma dor de dente que uma guerra na China”. Além disso, para alcançarmos efetivamente essas grandes mudanças é necessário, segundo Horácio Ferreira, que atitudes simples e cotidianas, como respeitar as regras de circulação, passem a ser postas em prática o mais rápido possível. “Seja em Goiás ou em qualquer outra região do país, devemos começar a seguir os bons exemplos imediatamente”, pontua o especialista, lembrando em seguida que somente assim inúmeros acidentes ― como o que vitimou Jéssyca e a impediu de ver seu grupo aprovado com nota máxima no trabalho final da faculdade ― poderão ser evitados.
Bike Anjo
Conheça o projeto Bike Anjo! No vídeo ao lado, a cidadã Ana Raquel comenta como conheceu o projeto e como aprendeu a andar de bicicleta em Goiânia por meio dessa atitude transformadora.
Por Thiago Araújo
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