O jornalismo moderno, uma versão do ideal de Walter Lippman de intermediação dos fatos entre o público e as elites, é especialmente adaptado à produção corporativa de notícias e análises. Como observou Kevin Carson, o modelo jornalístico atual requer mínima referência aos fatos, já que os fatos não são independentemente importantes e devem ser avalizados por algum tipo de elite de “especialistas”.
Mais que um modelo de geração de conteúdo, o jornalismo praticado atualmente também é um modelo organizacional, já que ele drena o valor do trabalho jornalístico, que fica sem um ponto de referência e passa a se ater às subjetividades das opiniões daqueles que se encontram em posições específicas dentro das instituições sociais e políticas. Quando o trabalho jornalístico é despido de seu conteúdo dessa forma, ele passa apenas a propagar a validade de uma estrutura social, porque é essa estrutura que valida o jornalismo (a cobertura de protestos, por exemplo, só é validada com a opinião de um representante da Polícia Militar; a cobertura das eleições só é validada com a chancela dos representantes dos partidos estabelecidos; e assim por diante).
Assim, quando o jornalista foge desse modelo de produção e busca fontes e fatos independentes da validação dos agentes estabelecidos, ocorre uma sensação de estranhamento. Há uma fuga do que se tem como ideia do papel da imprensa e uma saída do que se internalizou como “neutralidade” jornalística. Após recentes entrevistas com os candidatos a presidente no Jornal Nacional, por exemplo, circularam muitas críticas à postura incisiva de William Bonner, que tendeu a não se prender aos assuntos autorizados do “bom debate político” (uma das ideias muito disseminadas, atualmente, é que “se deve discutir as propostas dos candidatos”, implicitamente presumindo que a própria existência dessas “propostas” seja algo desejável ou justificável, dado o histórico dos programas e projetos presidenciais).
Buscas
Nessa busca pela neutralidade institucional, além disso, ocorre um cenário muito comum nas avaliações dos debates presidenciais que começaram recentemente a ocupar os horários das emissoras de TV. Depois dos debates da Band e do SBT, as análises que rodaram tendiam a não tomar como referência qualquer fato indisputável ou discussão que havia acontecido. Em vez disso, os jornalistas agem como consultores de media training, afirmando que candidato fulano estava “nervoso”, ou “se atrapalhou nas respostas”, ou “não mostrou segurança”, ou “foi duro”, ou “passa a imagem de confiança”, entre outras banalidades.
Esse tipo de avaliação não requer qualquer recurso aos fatos e implicitamente dá como certa uma passividade do espectador, que é visto como incapaz de avaliar o desempenho de um candidato e o que ele tem a dizer. Se os jornalistas presumissem um espectador ativo, eles passariam sua avaliação direta sobre o conteúdo e a postura dos candidatos; diriam que o candidato se saiu bem, que apresentou suas ideias de forma boa ou ruim, que é o melhor ou o pior entre as opções. Ao contrário, porém, sempre se imagina que existe um espectador ideal médio, que avalia certas atitudes de maneira específica, que se preocupa mais ou menos com trejeitos e discursos particulares.
Os jornalistas nunca dirão sua própria opinião sobre os políticos, com um paradigma ou ideologias claros como ponto de partida, mas vão falar que os candidatos “foram vistos” como fortes ou fracos e “foram considerados” confiantes ou inseguros. Nunca de seu ponto de vista pessoal, mas sempre do ponto de vista obscuro de um avaliador independente a que ninguém tem acesso — o espectador médio.
Formato
O próprio formato dos debates também é questionável: por que é que os candidatos têm qualquer liberdade para eleger temas de que falar? Não é implausível que os próprios políticos saibam o que é mais relevante para o eleitorado? Não seria mais razoável presumir que os postulantes — principalmente a cargos muito altos, que governam milhões de pessoas — estão divorciados das preocupações da população e mais preocupados e manter a própria posição de prestígio?
É por esse motivo que debates eleitorais, embora sejam vistos como excelente entretenimento televisivo (principalmente hoje em dia, quando carregam memes e piadas a reboque em redes sociais), não trazem qualquer conteúdo informativo a respeito da política.
Seu formato é viciado e os jornalistas, que deveriam ser capazes de prover uma avaliação objetiva das discussões, se colocam no lugar de um eleitor imaginário. E os jornalistas não são aqueles que estabelecem quais são as questões importantes a serem discutidas — são os políticos que estipulam os termos do debate, porque o jornalismo em si, da forma como é praticado, não tem validade fora das estruturas sociais existentes.
É por isso que debates eleitorais são um circo.
Erick Vasconcelos é jornalista, ativista e coordenador de mídias do Centro por uma Sociedade Sem Estado (c4ss.org)
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