Thiago Araújo
E amanhã vamos caetanear, disse Caroline Camargo com um sorriso sutil no rosto ao se referir ao músico Caetano Veloso. No dia seguinte, ela e outros três amigos seguiram viagem rumo à Cidade de Goiás para compartilharem juntos a apresentação de Caetano Veloso na 14ª edição do Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (Fica). No entanto, naquele primeiro domingo de julho de 2012, diferente do que imaginavam, os jovens não caetanearam.
Enquanto seguiam para o evento pela GO-070, próximo a Itaberaí, na região noroeste de Goiás, um veículo VW Polo conduzido pelo médico Virgílio Luiz Ordones, que seguia no sentido contrário, colidiu-se frontalmente com o Ford KA que levava os jovens à antiga Vila Boa. O Corpo de Bombeiros informou na época que o médico tentou fazer uma ultrapassagem em local proibido quando aconteceu o acidente.
Naquele ano, um levantamento realizado pelo Observatório Nacional de Segurança Viária (ONSV) apontou que 45 mil cidadãos morreram vítimas de acidentes de trânsito no Brasil, um a cada 12 minutos. Às 11h33 do dia 1° de julho de 2012, a 102 km de Goiânia, um minuto bastou para ferir sete pessoas e matar outras três – duas que viajavam ao lado do médico e a estudante de Direito Caroline Camargo, então com 22 anos.
Em seu depoimento às autoridades policiais, um primo do médico, identificado como Renato, admitiu que na noite anterior ao acidente os dois participaram das festividades na Cidade de Goiás até às 5 horas da madrugada. Por volta das 10 horas da manhã de domingo eles resolveram voltar para casa e retornaram à GO-070 rumo a Brasília. Conforme consta no inquérito, próximo à Itaberaí o médico tentou ultrapassar a cerca de 120 km/h uma camionete e um caminhão que seguiam pela rodovia. “Porém, o tempo não foi suficiente”, lamentou Renato na época.
Após a investigação do acidente, Virgílio Luiz foi denunciado por homicídio duplamente qualificado das três vítimas fatais do acidente. O caso ainda não foi julgado e segue sob análise da Poder Judiciário de Goiás desde o mês de junho deste ano. O Folha Z tentou contato com o médico para ouvir sua versão sobre o acidente, mas as ligações não foram atendidas. Também foi feito contato via e-mail, mas não houve retorno.
O reflexo da ultrapassagem
Cinco anos depois, Pedro Henrique Pereira, de 30 anos, amigo de Caroline e um dos sobreviventes do acidente em Itaberaí, decidiu abrir as portas de sua casa e revisitar os fatos daquele domingo. Inicialmente, segundo ele, a intenção era viajar na noite de sábado, mas por acharem arriscado decidiram seguir viagem no dia seguinte pela manhã. “Iríamos aproveitar a cidade”, lembra.
Naquele domingo os termômetros marcaram 30 °C na Cidade de Goiás e o tempo estava favorável para realizar atividades turísticas na região. “O dia estava claro. Ainda não sabíamos como preencher as horas antes da apresentação, mas poderíamos tomar banho em alguma cachoeira, fotografar os becos da cidade ou visitar o museu de Cora Coralina. A nossa única obrigação era ver e ouvir Caetano ao vivo pela primeira vez”, revelou o jovem.
Entretanto, no meio do caminho a viagem foi inesperadamente interrompida. Sentado no sofá de casa, Pedro Henrique relembra que tudo foi muito rápido e que só se deu conta do que havia acontecido ao se ver preso às ferragens. “As pessoas que chegaram após a colisão dizem que eu pedia socorro. Dentro do carro eu tentei me movimentar, mas não conseguia e então temi pela coluna e pela falta de movimentos nas pernas”, revelou.
No acidente, o jovem fraturou as duas pernas e o cotovelo direito. “Até hoje, tanto tempo depois, sinto dores ao me movimentar, principalmente no tornozelo. Digo sempre que a minha vida é marcada pelo antes e depois do acidente, pois cada movimento me faz lembrar daquele dia”, assegurou Pedro, que tentou mostrar as cicatrizes físicas da tragédia.
Enquanto isso, no canto direito da sala da casa de Pedro Henrique, o fotógrafo Jackson Rodrigues, que acompanhava e ouvia atentamente o depoimento do jovem, comentou que naquele mesmo ano perdeu o pai, Orlando Rodrigues da Mata, vítima da violência no trânsito e de forma semelhante. “Um motorista fez uma ultrapassagem em local proibido no Km-73 da BR-020, próximo à cidade de Formosa, e acabou batendo de frente com o veículo em que meu pai estava”, disse.
Orlando Rodrigues, que chegou a sofrer uma fratura exposta no fêmur, teve que ser transportado de helicóptero para o Hospital de Base de Brasília (HBB) devido a situação grave em que se encontrava. Na unidade de saúde, ele não resistiu aos ferimentos e morreu por conta de uma parada cardiorrespiratória.
Desrespeito: o anúncio de tragédias
Casos semelhantes aos que vitimaram Caroline Camargo e Orlando Rodrigues da Mata e deixaram traumas físicos e psicológicos em Pedro Henrique, segundo o presidente do Departamento Estadual de Trânsito de Goiás (Detran-GO), Manoel Xavier Ferreira Filho, seriam evitados se os condutores observassem as leis de trânsito e adotassem uma postura defensiva ao assumir a direção de um veículo. “O trânsito é uma construção coletiva. Os seus problemas têm impactos na vida de todos. Por isso, a solução também passa pelas ações de cada um de nós”, observou, durante a divulgação da programação completa da campanha Maio Amarelo deste ano.
O jovem Pedro Henrique concorda com a afirmação do presidente do Detran-GO. Para ele, o acidente em Itaberaí só foi causado porque a sinalização não foi, de fato, respeitada. “O local da ultrapassagem estava visivelmente sinalizado por faixas amarelas contínuas”, lembrou o jovem, que em decorrência da colisão ficou internado 21 dias no Hospital de Urgências de Goiânia (Hugo) – quatro na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) – e se viu preso a uma cadeira de rodas por um ano e oito meses após o acidente.
A ultrapassagem em faixa contínua, de acordo com o coordenador da comissão de análise de acidentes do Projeto Vida no Trânsito, do Ministério da Saúde, Horácio Ferreira, é uma infração grave que gera multas e pontos na Carteira Nacional de Habilitação (CNH). “O objetivo desse tipo de sinalização é demarcar o sentido do fluxo e as áreas onde é permitido ultrapassar. Qualquer tentativa de ultrapassagem nesses locais pode motivar acidentes graves, geralmente com vítimas fatais, pois as colisões são frontais”, explicou à reportagem.
No início deste mês, entre os dias 1° e 4 de novembro, durante o feriado de Finados, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) autuou, somente nas rodovias federais que cortam Goiás, 111 motoristas por ultrapassarem em locais proibidos. No feriado esse tipo de infração também foi registrado na GO-431, um dos acessos à Pirenópolis, pela reportagem do Folha Z (a imagem incontestável da imprudência abre esta reportagem).
Ainda durante o feriado prolongado de Finados, a imprudência foi além das ultrapassagens irregulares. Os policiais rodoviários flagraram 2.550 condutores em velocidade acima do limite permitido e autuou 14 por embriaguez. Na quinta-feira, 2, um motorista foi flagrado circulando a 180 km/h na BR-060, entre Anápolis e Goiânia. Conforme a PRF, a velocidade máxima no trecho é de 110 km/h. Por trafegar acima do estabelecido, o condutor foi multado em R$ 880.
Para o psicólogo do trânsito Roberto Martins da Silva, as atitudes desrespeitosas citadas anteriormente anunciam as tragédias e estão diretamente relacionadas ao número e a gravidade dos acidentes. “A violência no trânsito, que é noticiada todos os dias pelos jornais, é resultado da atuação desajustada do condutor. Muitos acidentes são cometidos por motoristas que não se atentam às leis de trânsito e que abusam de substâncias como álcool”, pontua. “Por isso, diante de tanto desrespeito, é importante aumentar a segurança viária e estimular a adoção de comportamentos seguros”, acrescenta.
Estratégias de prevenção reduz os prejuízos
A violência no trânsito ultrapassa os danos visíveis e afeta a sociedade de uma forma geral, causando inestimáveis prejuízos emocionais, físicos e danos bilionários aos cofres públicos. Um estudo inédito do Centro de Pesquisa e Economia do Seguro (CPES), da Escola Nacional de Seguros, estimou que, só no ano passado, o prejuízo no trânsito foi de R$ 146,8 bilhões, ou 2,3% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro.
O psicólogo Roberto Martins acredita que além dos prejuízos financeiros, físicos e estéticos, as vítimas de acidentes no trânsito podem também adquirir traumas psicológicos, como é o caso de Pedro Henrique, que até hoje não consegue guiar um veículo pelas ruas da capital. “Algumas vítimas desenvolvem o Transtorno do Estresse Pós-Traumático. Esse distúrbio produz prejuízos às atividades corriqueiras, como por exemplo ao ato de dirigir, criando nessas pessoas um comportamento de fuga e evitação”, revela.
Diante disso, de acordo com o especialista, é necessário que haja a inclusão das vítimas no trânsito e que a segurança dos veículos e a criação de leis como o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) e a Leia Seca avancem progressivamente. “Assim como temos regras em nossas casas, precisamos delas em todas as esferas da vida social. Neste sentido, as leis de trânsito existem para garantir uma convivência harmônica nos espaços onde circulam motoristas, motociclistas, ciclistas e pedestres”, destaca Roberto Martins.
Além disso, segundo o psicólogo, é importante a promoção de campanhas de conscientização a fim de evitar que as tristes estatísticas se renovem ano após ano. “Somente a educação integral consegue produzir homens e mulheres irrepreensíveis em seus comportamentos, agentes seguros e bons motoristas”, acredita.
Com o objetivo de contribuir justamente com as escolhas diárias e conscientizar as pessoas, o Detran-GO realiza ao longo do ano inúmeros projetos no Estado, como por exemplo os programas Maio Amarelo, Balada Responsável, Viagem Segura e Detranzinho.
Neste ano, uma campanha chamou a atenção dos goianos e alertou sobre os riscos à vida. Em setembro a autarquia enviou às residências dos condutores mensagens de conscientização disfarçadas de advertências de trânsito. As cartas simulavam notificações reais com uma foto de um veículo destruído ao ter realizado uma ultrapassagem irregular. Ao final da carta, uma frase em destaque alertava: “O maior problema da ultrapassagem proibida não é a multa. É pôr em risco a vida de muitas pessoas”.
Segundo o presidente do Dentran-GO, Manoel Xavier Ferreira Filho, o órgão tem utilizado todos os mecanismos possíveis para promover a redução da violência no trânsito. Dados preliminares do DataSUS apontam que no ano passado 1.837 pessoas morreram em decorrência de acidentes em Goiás. Em 2014, o Estado registrou 2.110 vítimas fatais. “Apesar do índice de morte ter caído em relação à 2014, ainda é um número alarmante. Para mudar essa realidade precisamos fazer as escolhas certas. Quando escolhemos usar o cinto de segurança e respeitar a faixa de pedestres, por exemplo, estamos também escolhendo o tipo de trânsito que queremos. Nosso lema é educar para não punir, mas nos casos em que a conscientização não mostra resultados satisfatórios, temos que intervir de forma firme com a fiscalização”, pondera.
Desta forma, conforme avalia o psicólogo Roberto Martins, viagens não seriam interrompidas, sonhos não seriam cessados, shows não deixariam de ser vistos e a conjugação do verbo caetanear não seria silenciada. “A prevenção é, sem dúvida alguma, o melhor caminho para evitar o desrespeito às leis de trânsito, os prejuízos coletivos e individuais e os traumas vivenciados pelas vítimas. É certo que inda temos um longo caminho pela frente até entendermos que nossos gestos preservam a vida”, finaliza.
Homenagem
Após o acidente que vitimou Caroline Camargo, restou apenas a saudade entre os familiares e amigos. Procurado pelo Folha Z, o pai da Jovem, Jackson Camargo, afirmou que seria difícil falar sobre o caso, mas enviou um vídeo de uma homenagem que fez para a filha. Clique aqui para ver.
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