Em junho de 2014 minha mulher e eu fomos conhecer Istambul. Não por coincidência, procedíamos de Roma. Quiséramos, de fato, experimentar esse salto abrupto, proporcionado por pouco mais de duas horas de voo, entre as duas cidades milenares – a Roma do Ocidente e a Roma do Oriente.
Encontramos uma Istambul fortemente ocidentalizada. O trânsito caótico, aliás, lembra muito o de Roma. No entanto, sobre a buzinação dos automóveis e o ruidoso assédio dos comerciantes é possível ouvir, cinco vezes ao dia, a miríade de minaretes reproduzirem a voz do muezin chamando à oração. É assim que a gente se lembra, frequentemente, de estar num país islâmico.
Durante séculos, o panorama das cidades do mundo cristão foi marcado pela visibilidade das torres das igrejas. Elas se erguiam acima das demais edificações, ganhando altura e sinos exatamente para assinalarem a presença do sagrado. Com o tempo, porém, nos grande centros urbanos, os arranha-céus superaram as torres, os sinos calaram e as igrejas sumiram na paisagem. Em Istambul, diferentemente, os minaretes, sempre visíveis, preservam sua importância simbólica para a religiosidade da população muçulmana.
Daquele primeiro contato com um país islâmico, ficaram-nos duas importantes constatações. Primeiro, foi o fato de que, em momento algum, qualquer de nós – minha mulher e eu – ocidentais, católicos, praticantes, nos sentimos estranhos perante a religiosidade da população local, suas expressões de fé, suas mesquitas, seus cantos e suas práticas religiosas. Tudo nos pareceu bom, digno e respeitável. Ficou ainda mais difícil, então, entender a existência, no Ocidente, de pessoas e organizações que, se dizendo agredidas por manifestações públicas de religiosidade, pretendem aboli-las.
Segundo, foi perceber que não existe, na Turquia, interdição ou rejeição a outras religiões, seus símbolos e suas práticas. Certamente entre outros, há templos católicos, evangélicos e sinagogas, revelando o caráter moderno e civilizado do povo. Um bom exemplo dessa virtude torna-se nítida no interior de Santa Sofia, ou Agia Sophia (Sagrada Sabedoria). Aquela magnífica construção foi catedral de Constantinopla durante 11 séculos. Com a tomada da cidade pelos seljúcidas, em 1453, foi convertida em mesquita. Em 1935, virou museu. Ao visitá-la, observam-se, por toda parte, símbolos cristãos e tentativas de recuperar mosaicos com temas católicos que haviam sido recobertos com tinta durante seu uso como mesquita. Deixamos Santa Sofia pensando sobre a extravagante sensibilidade que faz certas pessoas, em pleno século 21, se sentirem constrangidas, agredidas, com a visão de um crucifixo ou de outro símbolo religioso em local público.
Estas reflexões, me levam, enfim ao ataque terrorista à redação do Charlie Hebdo. Assim como há o ateísmo como doença mental (presente em todas as experiências comunistas do século 20), existe a religiosidade como doença mental, perceptível nos fanatismos e no jihadismo que, com violência crescente, se verifica no islamismo. A intolerância é um mal que pode afetar tanto os crentes quanto os ateus. Não é um mal inerente à crença ou à descrença. É um mal do indivíduo.
Os cartunistas do semanário francês não foram as únicas e singulares vítimas dessa insanidade que iniciou no século 7º e nunca teve fim. Em mais de meia centena de países, seja como vítimas do ateísmo, seja como vítimas de fanatismos religiosos, morrem 20 cristãos por dia no mundo. Centenas de milhares são constrangidos a migrar. Cinco dezenas de países os discriminam negativamente. No Iraque, por exemplo, desde 2003, a população católica perdeu 700 mil membros. Outros 450 mil deixaram a Síria. Duas centenas de igrejas cristãs foram destruídas na Nigéria, durante o último mês de outubro. Mas esses fatos não ganham manchete, não levam ninguém às praças do mundo civilizado, e não geram, na diplomacia de Dona Dilma, qualquer manifestação.
O nome disso é farisaísmo. Enquanto defende a liberdade de criação dos cartunistas franceses, designa para a pasta da Comunicação de seu próprio governo um ferrenho adversário da liberdade de imprensa, que deixou isso bem claro já no discurso de posse.
Percival Puggina é arquiteto, empresário, escritor, titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no País
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