Zona, trauma e volume morto
Impossível não se comover diante do drama de um pai que vê sua filha, de 17 anos, entrar para a triste estatística de estudantes estupradas na Universidade de São Paulo (USP). Pior ainda é saber que a Cidade Universitária tem um espaço conhecido como “rota do estupro” e praticamente nada é feito para coibir o assédio às jovens que por lá passam durante o dia e à noite. Segundo relato do pai, o câmpus virou “zona franca do crime”.
Para tentar superar o trauma, tanto a filha como os pais passam por tratamento psicológico. Ninguém foi preso, afinal trata-se de uma ação criminosa rotineira no local, e a USP segue tentando minimizar a repercussão dos fatos para não manchar (ainda mais) a sua imagem. “A minha filha é a pessoa mais forte que conheço, mas a luz dela se apagou após o crime”, desabafou o pai. O episódio na Cidade Universitária merece algumas reflexões.
Banalização e machismo – Primeira pergunta do escrivão na delegacia foi se a jovem usava saia no momento em que foi abordada pelo estuprador. Quem sabe teria “se oferecido” para o bandido.
Trauma ou morte? – Muitas mulheres vítimas de estupro passam a questionar a extensão da dor a que foram submetidas, revelando se a morte não teria sido “melhor” em função do sofrimento e constrangimento incalculáveis.
Investigação e impunidade – Parcela significativa dos crimes na USP é cometida pelos próprios estudantes da instituição. E a motivação passa pelo uso de drogas ou mesmo a certeza do silêncio e acobertamento da ação delituosa.
Sonhos perdidos – O estupro atinge em cheio as expectativas de uma jovem estudante do curso de Economia e Administração, dos pais que sonhavam vê-la feliz e realizada, além das colegas que temem ser a “próxima vítima”.
O crime cometido na Cidade Universitária é um tapa na cara da classe média-alta que se comove diante do estupro coletivo no Piauí, amplamente divulgado pela mídia. Mas ao mesmo tempo tapa olhos e ouvidos para todo tipo de excesso cometido não apenas na USP, mas em dezenas de outras instituições de ensino superior espalhadas pelo país.
O comportamento de alguns reitores e professores que priorizam a imagem pública de suas universidades me fez lembrar o período em que recebi uma pauta para investigar o aumento na incidência de crimes em condomínios horizontais de luxo em Goiânia. Passei dias tentando levantar dados em delegacias e com a PM, entretanto havia um pacto informal de silêncio.
Até o momento em que tive o famoso papo reto com um delegado e um síndico de conhecido condomínio. Vou resumir o recado: “Você não vai obter uma informação oficial para a matéria. Os condomínios experimentam, sim, aumento no número de pequenos crimes e assédios sexuais, mas não nos interessa torná-los públicos. Isso é reflexo da sociedade e atrapalha nossa imagem. São motivados por drogas, desvios de conduta e desequilíbrio emocional de alguns moradores. Esses problemas nós resolvemos internamente, ninguém precisa saber”.
A sociedade, como sempre, prefere varrer seus problemas para o volume morto do tapete.
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