Leandro de Castro
Nas mãos, marcas de uma tentativa de feminicídio. No olhar, ainda carregado pela dor, a esperança de quem deseja recomeçar.
Essa é a realidade de V.R., mãe, guerreira e sobrevivente de uma tentativa de assassinato pelo ex-marido, que a atacou com uma faca dentro de sua própria casa. Após o episódio traumático, precisou abandonar seu lar, vender o carro e deixar o emprego que mantinha há 15 anos para proteger a si mesma e ao filho. Perdeu quase tudo, mas não a vontade de reconstruir a própria vida.
Espaço de acolhimento
Foi em busca de apoio que V.R. chegou ao Núcleo de Atendimento a Vítimas de Crimes Violentos (Navita), inaugurado em setembro de 2025 pelo Ministério Público de Goiás (MPGO).

O espaço, na sala T-22, no térreo da sede do MPGO, no Jardim Goiás, em Goiânia, foi pensado para acolher vítimas de forma integral, oferecendo atendimento jurídico, psicológico e social, um refúgio onde cada voz é ouvida, cada sofrimento é reconhecido e a dignidade é restaurada.
Com a voz embargada e os olhos marejados, V.R. relatou ao Portal Folha Z que chegou à sede do MPGO apenas para conseguir uma vaga de creche para o filho, após ter que mudar de endereço por segurança.
Mas, ao entrar no espaço, vivenciou muito mais do que apoio burocrático, foi recebida com acolhimento, compreensão e cuidado que transformaram sua situação, oferecendo suporte emocional em meio ao caos que enfrentava.
“Ele [o agressor] ficou apenas um ano preso e, assim que soube que havia sido solto, precisei me mudar às pressas. Tive muito medo de que ele viesse atrás de mim. Como não consegui vaga em creche para o meu filho no novo endereço, fui ao Ministério Público em busca de ajuda. Chegando lá, perceberam meu nervosismo e me encaminharam para o Navita, que até então não sabia que existia”, conta V.R..

Ainda segundo ela, ao adentrar à sala de paredes claras, iluminada e cuidadosamente decorada para transmitir tranquilidade, foi imediatamente ouvida, recebendo a atenção necessária que a fez se sentir protegida e compreendida.
“Cheguei lá por volta das 12h e só saí às 20h. Passei a tarde inteira conversando com as psicólogas e, no dia seguinte, uma delas já entrou em contato comigo, perguntando do que eu precisava e se estava faltando algo. Eu estava completamente destruída”, acrescentou.
Força para recomeçar
Esse acolhimento foi o suporte que V.R. necessitava, após ter sido agredida, julgada pela família do agressor e mergulhada em um quadro de depressão.
Com o apoio do Navita, ela pôde retomar o controle de sua vida, iniciar acompanhamento psicológico semanal e reconstruir sua rotina, ainda que de forma lenta e desafiadora.
“Sinceramente, se não fosse essa ajuda, não sei onde eu estaria hoje. Atualmente, faço acompanhamento psicológico duas vezes por semana. E, se preciso falar com a doutora com urgência, ela está sempre à disposição pra me atender, a qualquer hora. Tudo isso tem me dado forças para seguir, por mais difícil que seja a situação”, desabafa.
Apoio institucional e humanizado

O que V.R. vivenciou mostra, de forma concreta, o papel essencial do Navita no apoio a vítimas de crimes violentos em Goiás.
Criado pelo Ato PGJ nº 61, de 4 de agosto de 2025, e vinculado à Subprocuradoria-Geral de Justiça para Assuntos Institucionais, o Núcleo de Atendimento a Vítimas de Crimes Violentos (Navita) tem como missão oferecer atendimento humanizado, orientação jurídica, acesso à justiça, encaminhamento para atendimento psicossocial e de saúde, além de acompanhamento contínuo às vítimas.
De acordo com o coordenador do Núcleo, promotor de Justiça Augusto Moreno, a criação do Navita responde à necessidade de colocar a vítima no centro das políticas de proteção.

“Desde a Resolução nº 243 do Conselho Nacional do Ministério Público, de 2021, todos os Ministérios Públicos devem criar núcleos multiprofissionais para atender integralmente as vítimas. Essa diretriz tem base em normas internacionais, como a Resolução nº 40/34 de 1985 da ONU, que estabelece princípios fundamentais de proteção e tutela dos direitos humanos das vítimas, que muitas vezes ficam em segundo ou até terceiro plano”, explica.
O promotor ressalta que o núcleo atende vítimas de crimes violentos de diferentes perfis, mulheres, crianças, idosos e familiares de vítimas, abrangendo casos de violência física, sexual, moral e psicológica.
“Aqui, conseguimos mapear as demandas de cada vítima. Muitas chegam com questões jurídicas, como dúvidas sobre denúncias, acordos ou participação no processo, e também com necessidades emocionais e sociais que precisam de encaminhamento especializado”, detalha Moreno.
Ainda de acordo com o coordenador do Navita, a criação de um espaço estruturado para vítimas é essencial para que seus direitos sejam efetivamente garantidos, evitando falhas históricas que já resultaram em condenações internacionais ao Brasil.

“A vítima precisa de um espaço próprio de acolhimento e garantia de direitos. Isso é tão sério que o Brasil já foi condenado 18 vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, sendo 16 dessas condenações por violações aos direitos das vítimas. O Estado tem o dever de garantir não apenas indenizações financeiras, mas também o restabelecimento físico, psicológico e social da vítima. Quando isso não ocorre, o Estado falha”, acrescenta.
Compromisso com a dignidade humana
O caráter humanizado do Navita também foi ressaltado durante a inauguração do espaço pelo procurador-geral de Justiça, Cyro Terra Peres.
Para ele, o núcleo vai além da estrutura física, é um compromisso do Ministério Público de Goiás com as vítimas de crimes violentos.
“Esse espaço é um despertar para essa atividade tão importante: de sermos interpelados pela realidade. Quando temos a pessoa na nossa frente, é diferente. Quando conversamos, ouvimos e entramos na dinâmica de quem sofreu, é diferente. Aqui nós vamos ajudar muitas vítimas. E também seremos ajudados por elas”, ressaltou.

O procurador-geral salientou ainda que, mesmo em tempos de avanço tecnológico, o atendimento direto continua sendo essencial.
“O ser humano vive e se comporta conforme os locais onde ele se encontra. Muitas vezes a tecnologia nos afasta das pessoas, mas também permite muita coisa boa e o MP hoje é mais acessível. Mas nada supera o contato direto. Nós somos humanos e estamos do lado certo”, pontuou.
A criação do Navita está alinhada ao Planejamento Estratégico 2023-2029 do MPGO, fundamentado nos valores de resolutividade, independência, ética, efetividade e transformação.
O núcleo já firmou parcerias e termos de cooperação com universidades, e o objetivo é consolidar essa rede de acolhimento em todo o estado, garantindo que nenhuma vítima de crime violento fique sem apoio especializado.
Panorama da Violência Doméstica no Brasil
O acolhimento oferecido pelo Navita evidencia a importância de um espaço institucional estruturado e humanizado para vítimas de crimes violentos, em especial mulheres.
Os dados recentes mostram a dimensão do desafio e a necessidade de políticas públicas consistentes e de atendimento especializado.
Segundo registros do Painel Violência Contra a Mulher, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2024 foram iniciados 8.464 novos processos de feminicídio, enquanto o número de casos julgados chegou a 10.991, um aumento de mais de 225% em relação a 2020, quando foram julgados 3.375 casos.
A violência doméstica, que engloba crimes previstos na Lei Maria da Penha e descumprimento de medidas protetivas, também apresentou números alarmantes: 966.785 novos casos chegaram à Justiça em 2024, sendo 596.309 julgados, deixando ao final do ano 1.297.142 processos pendentes.
Em relação às medidas protetivas de urgência, foram registradas 831.916 movimentações processuais, das quais 582.105 resultaram na concessão de proteção às vítimas.
Complementando esses dados, uma pesquisa do Datafolha, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e divulgada em fevereiro deste ano, revelou que mais de 21 milhões de brasileiras, cerca de 37,5% das mulheres, sofreram algum tipo de violência nos últimos 12 meses.
É o maior índice desde o início da série histórica em 2017, representando um aumento de 8,6 pontos percentuais em relação a 2023.

Os tipos de violência mais comuns incluem ofensas verbais (31,4%), cerca de 17,7 milhões de casos, seguidas de agressão física (16,9%), ameaças de agressão e perseguição (16,1%), abuso sexual (10,7%), espancamento ou tentativa de estrangulamento (7,8%), ameaças com faca ou arma de fogo (6,4%) e divulgação de fotos ou vídeos íntimos sem consentimento (3,9%).
A pesquisa também aponta que a residência continua sendo o local mais frequente da violência grave, com 57% dos casos, seguida da rua, com 11,6%.
O cenário em Goiás
Em Goiás, o canal Ligue 180 registrou, em 2024, 18.232 atendimentos, um aumento de 34,1% em relação a 2023 (13.588). As denúncias passaram de 3.483 para 4.422, acréscimo de 26,9%.
Nesse mesmo ano, os casos de feminicídio no primeiro semestre caíram de 32 para 20 registros, uma queda de 37,5%.

Além disso, as forças de segurança registraram 97.804 acompanhamentos de medidas protetivas no primeiro semestre de 2024, crescimento de mais de 338% frente ao mesmo período de 2023 (28.707).
Silêncio que ainda prevalece
Ainda de acordo com o estudo encomendado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a reação mais comum diante da agressão mais grave sofrida foi a inação, relatada por 47,4% das vítimas.
Outras respostas incluíram procurar apoio de um familiar (19,2%), recorrer a amigos (15,2%) e buscar ajuda na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (14,2%) ou em uma delegacia comum (10,3%).
No último ano, apenas 25,7% das mulheres que sofreram violência recorreram a órgãos oficiais, enquanto 33,8% buscaram apoio entre familiares e amigos.

A pesquisa reforça que os episódios mais graves de violência não são fatos isolados, mas fazem parte de um amplo contexto de abusos físicos e emocionais.
As mulheres ouvidas pela pesquisa relatam que, nesse ciclo de violência, a conduta do agressor inclui desrespeito e perda de autoestima (31,6%), intimidação (30,6%), privação de autonomia (29,5%) e invasão de privacidade (29,1%), entre outras práticas de controle coercitivo da vítima.
Rede de proteção e esperança
Diante de todos esses números, o trabalho desenvolvido pelo Navita reforça a importância de políticas públicas efetivas e de um acolhimento verdadeiramente humanizado. O núcleo tem se mostrado um exemplo de atuação integrada e sensível, capaz de oferecer às vítimas não apenas amparo jurídico e psicológico, mas também um caminho real de reconstrução e autonomia.
Em Goiás, as vítimas de violência doméstica também contam com acesso a diversos canais de denúncia e atendimento previstos na Lei Maria da Penha. O contato pode ser feito pelos telefones 190 (Polícia Militar), 197 (Polícia Civil), 153 (Guarda Civil Metropolitana) e 180 (Central de Atendimento à Mulher).
Além disso, o aplicativo Mulher Segura, lançado em maio de 2023 e disponível em todos os municípios goianos, permite iniciar um atendimento, localizar batalhões da Polícia Militar e delegacias na região, além de registrar boletim de ocorrência virtual.
Mais do que números, cada caso representa uma vida que pode e deve ser protegida. Procurar ajuda é o primeiro passo para romper o ciclo da violência e o Navita está de portas abertas para garantir que nenhuma vítima enfrente essa jornada sozinha.




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