Há uma dignidade inerente ao perdão pedido com o coração contrito pelo erro que se cometeu. Quem o formula cresce perante o próximo e perante Deus. Um pouco exótico, mas igualmente válido, é o perdão que se pede em nome de outros. Nesse caso, porém, convém ter certezas que me parecem ausentes quanto aos problemas do povoamento e da evangelização do Brasil:
a) certeza de não estarmos acusando, julgando e condenando antepassados a quem não concedemos direito de defesa;
b) certeza, portanto, de que as culpas que hoje apontamos estavam presentes na consciência daqueles a quem as atribuímos;
c) certeza de não estarmos colocando tal gesto a serviço de interesses ideológicos e políticos pelos quais igualmente, mais tarde, alguém terá que pedir perdão por nós; e
d) certeza de não estarmos incorrendo em anacronismo, ou seja, avaliando a conduta dos povoadores de quinhentos anos atrás, com critérios atuais.
Sobre o fenômeno do anacronismo vale lembrar que pouco mais de 200 anos nos separam do clássico “Dei delliti e dele pene” com o qual Cesare Beccaria apontou a desproporção entre delitos e penas no sistema judicial de seu tempo. Foi por influência desse livro que a Revolução Francesa introduziu a guilhotina, mais misericordiosa para corte de cabeças do que a machadada. E tudo era coisa não apenas corriqueira mas se constituía em espetáculo. “On s’amuse” (a gente se diverte) dizia sobre tais eventos um personagem de Racine. Diante desses fatos, quase recentes, podemos reprovar os portugueses por não haverem trazido a bordo antropólogos, sociólogos, ambientalistas, epidemiologistas, e não estarem perfeitamente a par do “politicamente correto”?
Esses idiotas que exigem reparações cobram dívidas históricas de cartão de crédito clonado. O documento é falso e os devedores que apontam no cartório da história são inocentes. Setenta por cento da população deste país tem sangue de branco, índio e negro. Portanto, vai ser muito difícil suscitar, aqui, um ódio racial do tipo que a esquerda norte-americana cultua. Mesmo assim, existem pastorais da CNBB que se dedicam a isso, permanentemente. Creio que deve ter arrefecido muito o apreço ao batismo e à salvação, para que a evangelização de um continente ande suscitando tanto remorso.
Se for para pedir perdão, por que não o fazerem também, como lembrava Sandra Cavalcanti em artigo publicado há alguns anos, os médicos que substituíram os curandeiros, as famílias novas que não aceitaram mais matar velhos e crianças aleijadas, e os cozinheiros europeus que retiraram do cardápio ameríndio os assados de bispos e desafetos?
Não parece adequado subordinar-se o ato penitencial a uma ótica reducionista que, ao explicar todos os fenômenos históricos como conflitos entre oprimidos e opressores, se põe a serviço de uma ideologia pagã. Anchieta, perdão.
Percival Puggina é arquiteto, empresário, escritor, titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no País
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